
Gianfrancesco Guarnieri
Episódio 2 - 36'21''
Vinheta de abertura
Leonardo Dourado:
Olá, eu sou o jornalista Leonardo Dourado. Está começando o podcast Canto dos Exilados. A história dos refugiados da Segunda Guerra Mundial que vieram para o Brasil e aqui deixaram um imenso legado nas ciências e nas artes
Kristina Michahelles:
E eu sou Kristina Michahelles, jornalista, tradutora e diretora do museu Casa Stefan Zweig de Petrópolis, instituição cultural que apoia esta iniciativa
Leonardo Dourado:
Você vai conhecer histórias fascinantes de gente do mundo das artes. Gente que deixou suas marcas aqui no nosso país, procurando abrigo da Segunda Guerra Mundial.
Kristina MIchahelles:
É emocionante saber como eles superaram as dificuldades durante a fuga do nazismo. E quanto nos deram em troca, um legado que enriqueceu nossa cultura. Este trabalho resultou de muita pesquisa de uma dedicada equipe que contou com a ajuda dos historiadores Fábio Koifman, no Brasil, e Marlen Eckl, na Alemanha. E é inspirado numa ideia do jornalista Alberto Dines, biógrafo do escritor austriaco Stefan Zweig
Leonardo Dourado:
O episódio de hoje apresenta a vida do dramaturgo italiano Gianfrancesco Guarnieri. As falas aqui selecionadas são de um depoimento que ele deu em 1983 e estão preservadas no Museu da Imagem e do Som de São Paulo.Também participa ao vivo aqui com a gente o Francisco Guarnieri, neto de Gianfrancesco e que fez um filme sobre seu avô.
O podcast Canto dos Exilados é patrocinado pela Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, Secretaria Municipal de Cultura e JGP Gestão de Recursos por meio da Lei Municipal de Incentivo à Cultura, Lei do ISS.
Passagem
Leonardo Dourado:
Ouça o que diz o ator, diretor e teatrólogo Amir Haddad sobre seu colega Gianfrancesco Guarnieri.
Amir Haddad:
Quer pessoa mais importante pra vida teatral brasileira em um certo momento do que o Gianfrancesco Guarnieri? Quer pessoa mais corajosa e atrevida do que ele? Que depois de décadas de um teatro onde se colocava a cultura europeia, os grandes textos ou então personagens de comédias, de comédias amorosas, o galãzinho que namora as menininhas, essas comédias do Coelho Neto que a gente via nos palcos brasileiros da década de 30. Pela primeira vez na vida vem uma pessoa como o Guarnieri e coloca o homem brasileiro em cena, verdadeiramente coloca um operário em cena. Aí o que era sala de visita virou cozinha, o que era brincadeira, sexo, adultério virou contradição política, virou luta de classes, virou um pensamento importante.
Kristina Michahelles:
Antes de enumerar os sucessos de Guarnieri e seu legado para o teatro, vamos conhecer detalhes sobre a fuga da família do menino Cesco da Itália fascista. Os depoimentos a seguir são de entrevistas que fizemos com Cecília Thompson, primeira mulher dele, e Flávio, filho do casal, também ator. Ambos já nos deixaram.
Flávio Guarnieri:
Meu avô, Edoardo de Guarnieri, era maestro. Minha avó, Elsa Martinenghi Guarnieri, harpista. Meu tio avô tocava violino e violoncelo, e era também luthier, construía violinos e violoncelos. Então, uma família extremamente musical. Meu avô e minha avó, venezianos. Meu pai, milanês.
Cecilia Thompson:
Dona Elsa se lembrou de uma antiga amiga, uma cantora lírica chamada Gabriella Besanzoni, que tinha se casado com um brasileiro. Não por acaso um brasileiro muito rico, Roberto Lage, que era dono de uma casa, uma residência comum, normal, chamada hoje de Parque Lage. Essa Gabriella conseguiu pra ela um contrato de trabalho aqui, não sei se foi na Rádio Nacional, era era harpista. Veio pro Brasil com esse contrato de trabalho, mas pagou um preço alto por isso. Todo mundo pagou preços muito altos pelos fascismos da vida, mas o dela foi terrível: ela ficou dois anos sem ver o filho. Porque ela veio para o Brasil sozinha, porque não podia trazer um bebê, porque vinha pra trabalhar, e o Gianfrancesco ficou com o pai, com Edoardo, na Itália, sendo cuidado pelos outros membros da família, tias e tios. Em 1937, a dona Elsa conseguiu um contrato de trabalho para o maestro, como regente, também na Rádio Nacional. Ele veio pro Brasil de navio, se não me engano veio no "Comte Grande", e trouxe o Cesco, um menininho.
Leonardo Dourado:
Bem, está aqui conosco o neto de Guarnieri, Francisco. Em 2017, ele produziu e dirigiu um documentário que ganhou prêmio sobre a vida de seu avô. Logo no início, o filme diz a que veio: o ponto central, além de biografar o artista, era discutir a ausência do pai e avô no dia a dia da família em prol da profissão e da militância. Francisco, seu filme além de uma rica pesquisa de imagem tem um caráter pessoal, testemunhal. O nosso podcast apresenta o legado dos exilados, mas este preço a pagar de descuido com a própria família é um outro lado da mesma medalha. No seu caso, no caso da família Guarnieri, como você resumiria o impacto dessas ausências com o distanciamento de um neto que teve que realizar um filme em busca de respostas para esta e outras questões?
Francisco Guarnieri:
Olá gente, que bacana estar aqui falando do Guarnieri, do meu avô, sob esse viés dos exilados que é tão interessante e que é fundamental em como ele se formou, veio para o Brasil muito cedo. Essa questão da distância é uma questão fundamental no documentário, como você disse, que começa já no início do filme, tem uma foto familiar e eu estou sentado no banco com meu avô, todo mundo está em volta. Eu não sei porque fizeram assim, botaram eu do lado só que a gente está longe. E eu pensei: tudo o que estou procurando preencher é essa distância, que na hora eu sentei do lado, mas eu sentei com uma certa distância que era a distância que eu sentia. Não consegui sentar do lado, abraçado, pertinho porque era um convívio de proximidade física e emocional que eu não tinha. Eu fiquei pensando muito nisso: a vinda dele pro Brasil e os pais dele, meus bisavós, trabalhavam muito de noite, eram músicos. E o Guarnieri sempre citou essa ausência dos pais dele. Então eu acho que tem uma certa naturalidade da vida que se impõe com essa ausência mesmo na presença, ele morava com os pais mas existia essa ausência. E pegando aqui pro meu lado, falando mais do meu pai, Paulo, do meu tio Flávio, eu acho que nesse núcleo familiar a mediação do Guarnieri público é fundamental. Eu não consigo nem separar como eu sentiria essa ausência do avô que era uma espécie de mito, uma figura pública inquestionável, digamos. E acho que esse impacto no Flávio, no documentário se constrói bem, pra quem viu ou que puder ver, que o Flávio ficou nessa camisa de força onde ele nunca conseguia chegar no pai dele, ou por exemplo, ele até fala isso: eu não podia não gostar do meu pai, ficar bravo com uma atitude dele porque ele era um homem perfeito, tava lá o tempo todo nos jornais como uma grande figura, um grande autor, e que era mesmo, tudo isso é verdade. Então acho que essa mediação midiática ela se impõe muito e eu acabei resolvendo isso de uma forma pública também.
Leonardo Dourado:
Bem, como você sempre ressalta, Kristina, os Guarnieri foram uma entre tantas famílias que enfrentaram os perigos da fuga da Segunda Guerra levando seus filhos pequenos.
Kristina Michahelles:
É, no dicionário que nós fizemos sobre os refugiados do nazifascismo no Brasil, editado pela Casa Stefan Zweig, tem inúmeros casos, são mais de 300 verbetes, são muitas famílias que tinham já crianças pequenas como Gianfrancesco e que aqui reconstruíram suas vidas e os filhos deixaram legado. Voltando para Guarnieri, ele abre seu depoimento dado ao MIS em abril de 1983, falando de seus primeiros experimentos com a escrita do teatro quando tinha apenas 14 anos.
Gianfrancesco Guarnieri:
Eu, na realidade, comecei as primeiras brincadeiras, nesse sentido, vamos chamar de brincadeiras no colégio ainda, num teatro amador da escola no Rio de Janeiro, no colégio Santo Antônio Maria Zaccaria, onde eu também cometi a minha primeira peça, chamava-se Sombras do passado, e que me valeu um convite para me afastar do colégio porque realmente eu criticava muito o vice-reitor da escola e foi meu primeiro encontro com a censura também.
Leonardo Dourado:
Quando a família se mudou para São Paulo, em 1955, ele se aproximou do Teatro Paulista do Estudante. Era um grupo amador que se fundiu com o Teatro de Arena em 1956. O Arena se tornou um centro de resistência cultural e de conscientização popular com o início do regime militar em 1964.
Gianfrancesco Guarnieri:
O teatro de Arena foi fundado pela primeira turma de formandos da Escola de Arte Dramática com Zé Renato, Geraldo Mateus, Xandó Batista, Florami Pinheiro, Eva Wilma, Fabio Cardoso, enfim, era uma turma que estava também começando naquele momento, eles ficaram três anos representando apenas em locais possíveis como salas, clubes e tudo mais e aí descobriram aquela garagenzinha aqui na rua Teodoro Baima e construíram aquele teatrinho pequeno, mas que desde o início já transmitia uma coisa muito importante. eu passava na frente, eu via o pessoal pintando, eles mesmos os atores pintando as arquibancadas, ou seja, coisa feita pelas próprias mãos. Eu não sei por que, mas dentro de mim eu dizia: eu acho que ainda vou passar por aqui, não sei como, mas um dia eu vou passar por aqui.
Kristina Michahelles:
No próximo bloco: o sucesso de Black-tie salva da falência o Teatro de Arena. O cantor Toquinho dá um depoimento e faz um tributo ao parceiro e amigo Guarnieri. Em seguida.
Kristina MIchahelles:
Bem, o cenário que Guarnieri profetizou para si mesmo acabou acontecendo de verdade: ele não apenas passou, como ficou e se envolveu muito com o Teatro de Arena através daquela que ele considera efetivamente sua primeira peça teatral: Eles não usam black-tie. O texto foi escrito em 1956 e a peça lançada dois anos depois pelo Teatro de Arena. Observe como ele descreve o ambiente no Brasil da época e a sua coragem para escrever de um jeito diferente, novo. Black-tie é considerada um marco no teatro brasileiro.
Gianfrancesco Guarnieri:
A gente achava que autor só pudesse ser um sujeito que falasse outra língua, jamais a língua portuguesa falada no Brasil e escrevi dessa maneira. Black-tie me deu essa alegria incrível, eu escrevia, ficava contentíssimo, chorava junto, ria junto com aquelas personagens, escondia, não mostrava a ninguém, ficava comigo mesmo.
Leonardo Dourado:
O enredo de Black-tie gira em torno de uma família proletária paulista. Tião, jovem operário, descobre que a namorada está grávida e decide marcar o casamento. Mas eclode uma greve e seu pai, Otávio, veterano líder sindical, adere ao movimento. Nos piquetes em frente à fábrica, o sindicalista é espancado e preso enquanto o filho fura a greve e credita à militância do pai a miséria em que eles vivem, criando um conflito na família. Guarnieri circulou o texto entre seus colegas do Teatro do Estudante, entre atores experientes e teve boa acolhida, mas como era novato, jamais imaginou que a montagem da peça aconteceria de verdade. Mal sabia ele que sua estrela começava a brilhar enquanto o Teatro de Arena, idealizado por Renato José Pécora, agonizava em dívidas.
Gianfrancesco Guarnieri:
Então o Teatro de Arena sendo obrigado quase a fechar as portas resolveu terminar seu canto de cisne tentando pelo menos cumprir uma de suas metas que era incentivar a dramaturgia nacional. O Zé Renato resolveu: "Nós vamos fechar montando uma peça de um autor jovem, brasileiro, uma temática nacional, quer dizer com nosso povo no palco, vamos colocar isso aí. Se a gente fizer 15 dias, ótimo. Se fizer um mês, melhor ainda.
Flávio Guarnieri:
Aí estreiam "Eles não usam black-tie" com um elenco maravilhoso, Miriam Mehler, Lélia Abramo, Flávio Migliaccio, Milton Gonçalves, nossa, tanta gente boa. Bom, estreia sob a direção do Boal, e a peça é um sucesso estrondoso. E realmente tira o Arena do buraco e fica mais de dois anos em cartaz. Ganham realmente muito dinheiro. Mas o mais importante que se ganha ali: é um marco. O Black-tie é o marco, é um divisor de águas.
Leonardo Dourado:
Este último resumo sobre Black-tie que ouvimos foi do Flávio, filho do Guarnieri. A propósito disso Francisco, no seu filme há um trecho onde você faz uma pergunta dura para seu tio Flávio, relativa à montagem de Black-tie que ele produziu. Aquilo que a gente estava falando agora há pouco. Você o coloca contra a parede questionando se Flávio não estaria montando a famosa peça do pai por uma questão personalista, que era justamente o contrário do que o Guarnieri defendia como arte. Então eu te pergunto: É possível se dizer que isso é uma espécie de maldição, um risco real que ameaça os herdeiros que carregam a missão de perenizar o legado artístico dos que os antecederam?
Francisco Guarnieri:
Então, pensando sobre isso, primeiro só uma correção ao Flávio que ele falou que o Boal dirigiu e acho que na hora ele deve ter trocado, foi o Zé Renato, o Zé Renato que se chamava Renato José, mas todo mundo chamava de Zé Renato, foi ele quem dirigiu essa primeira montagem do Black-tie em 58.
Sobre esta questão de manter o legado artístico, é realmente uma grande questão que está muito aí para essa geração dos anos 50 porque acho que a gente chegou num momento em que tem que manter isso vivo, tem que levar pra frente montando, remontando, mas é uma preocupação não cair nesse personalismo e simplesmente fazer porque é uma homenagem.
Acho que é preciso entender como essas obras se aplicam hoje, inclusive isso é um baita respeito a elas: pensar as potências, as críticas, o que elas têm, o que hoje continua desse jeito, o que precisa ser adaptado. E no meu documentário essa minha questão com o Flávio era uma questão muito forte e uma questão que a gente nunca tinha falado: nessa questão do teatro político e da montagem como uma realização pessoal ou a montagem como uma realização social.
E foi muito duro porque eu acho que não estava certo como a minha postura. Eu estava um pouco - eu não era assim tão jovem quando fiz o filme, estava com 35 anos - estava com essa coisa jovial de achar que você tem razão e julgar o mais velho um pouco apontando o dedo por que você não fez desse jeito.
Nesse sentido, fazendo o paralelo com Black-tie, o Black-tie foi de fato um norte pra mim no filme e acho que vale um norte para os processos que a gente viveu no país, porque além de ter toda essa questão de ter botado o operário em cena pela primeira vez, num texto em português falado coloquialmente, o Guarnieri está colocando ali sobre um crescimento do individualismo que ele sempre falou como um grande problema, o individualismo crescente que ia chegar num ápice e é o que a gente chega hoje.
Foi muito difícil pra mim entender exatamente o peso que teve na vida do meu avô, sobre a vida dele social, política e familiar, de ter sido filho desses exilados que vieram, pra cá, que tiveram que trabalhar o tempo todo, que tiveram que se virar pra vir, que ele teve que ficar ainda bebê sem a mãe lá, é um impacto que eu não consigo mensurar.
O meu avô e a obra são muito indissociáveis. O processo de fazer o filme, de conhecer a obra dele mais a fundo, ver entrevistas, ver ele falando no fundo fez eu me sentir muito mais neto. Porque tinha coisas que chegaram até mim, que eu concordo, que eu penso, que eu aprendi com ele através disso. Então eu acho que esse legado tem que ser mantido e tem que ter muito cuidado com essa possível maldição para a gente não cair num possível erro de: ah, vou montar Guarnieri porque eu adoro Guarnieri e é isso só. Tem que montar por isso também, o legado tem que ser estudado e montado e tem que pensar como essas potências podem ser aumentadas hoje em dia, em que contextos elas funcionam.
Kristina Michahelles:
É muito sutil tudo isso, é muito delicado porque não é só uma memória, são afetos familiares, mas realmente é muito interessante ouvir um neto como você agora. E agora, vamos ao arremate final do Amir Haddad sobre Black-Tie.
Amir Haddad:
E essa peça que parecia que não era nada fez um sucesso gigantesco no pequeno Teatro de Arena, o Teatro de Arena que já significava uma oposição à influência dos diretores, uma oposição natural à influência dos diretores estrangeiros que naturalmente falavam de sua cultura, não falavam de um outro país crescendo que eles não conheciam esse país. O Guarnieri botou esse país em cena. “Eles não usam black-tie” pela primeira vez a cozinha entrou pra cena brasileira.
Kristina Michahelles:
Seguindo a figura de linguagem de Amir Haddad, a cozinha continuou na cena brasileira com Guarnieri em suas criações posteriores: Gimba, em 1959, A Semente, 1961 e Filho do cão, em 1964. Todas retratando a luta operária e a divisão de classes.
Amir Haddad:
E aí de repente o Guarnieri coloca um operário, uma mãe de família, um dia de greve, questões da vida operária. E atrás disso depois vem A Semente que também é isso no palco do TBC, então as modificações vêm a cavalo e avançando muito. Tudo, tudo se atropelando, quando chega 64. A gente estava avançando mesmo, estávamos em pleno voo. Fomos abatidos em pleno voo, quem se safou se safou com uma asa quebrada, com pedaço do bico arrebentado, tivemos que aterrissar, muitos tiveram que se meter em arbustos e ali ficamos aninhados, esperando um momento de voltar à luta. Mas a ditadura brasileira acabou com essa força enorme que tinha a vida, essa força inclui: Gianfrancesco Guarnieri, inclui Ziembinski, inclui Gianni Ratto e inclui Nydia Licia. Nós somos filhos disso tudo no que tem de melhor. E somos também filhos desapontados, filhos desafortunados pela interferência violenta do obscurantismo, a ignorância total da ditadura militar.
Leonardo Dourado:
Durante o regime militar, o texto de Eles não usam Black-tie permaneceu censurado até 1977. Leon Hirszman só conseguiu lançar a versão cinematográfica com Fernanda Montenegro e o próprio Guarnieri nos papéis principais em 1981, quatro anos antes do fim da ditadura. O filme ganhou o prêmio especial do júri no Festival de Veneza.
Kristina Michahelles:
É fato que desde os primeiros anos dos militares no poder, Guarnieri já estava no radar dos censores. Em 1965 ele, Augusto Boal e Edu Lobo criaram um espetáculo tipicamente brechtiano, misto de musical e teatro sobre a saga do heroi negro dos Palmares, Ganga Zumba. Chamou-se Arena Conta Zumbi e o formato era o de um seminário histórico no qual um narrador contemporâneo comentava os episódios representados. Atingia um outro patamar de comunicação com a plateia.
Leonardo Dourado:
Também é certo que a parceria com Edu Lobo rendeu sucessos musicais como Marta Saré e Upa Neguinho.
Leonardo Dourado:
Mais adiante, em 1967, o formato foi aperfeiçoado em Arena Conta Tiradentes. Naquele mesmo ano, Guarnieri ficou popular como ator fazendo novelas e minisséries na televisão. Só na TV Globo a lista é imensa, mas podemos destacar Rainha da Sucata e Próxima Vítima, de Silvio de Abreu, Sol de Verão, de Manoel Carlos, Mandala, de Dias Gomes, Que Rei Sou Eu, de Cassiano Gabus Mendes, além de Anos Rebeldes, de Gilberto Braga, entre muitas outras atuações.
Kristina Michahelles:
E por falar em televisão, há um outro musical de 1971 que selou a parceria com o violonista Toquinho iniciada no Arena conta Zumbi. Foi Castro Alves pede passagem, espetáculo ambientado em um programa de TV e apresentando passagens da vida do poeta. O jogo metalinguístico do texto deu a Guarnieri o prêmio da Associação Paulista de Críticos Teatrais e o Molière de melhor autor. Ouça como o Toquinho relembra aquela criação e o método febril de trabalho de Guarnieri.
Toquinho:
Eu tinha aquela coisa de falar, puxa, um dia eu ainda vou fazer um musical com o Guarnieri como o Edu Lobo fez. Aí surgiu o Castro Alves pede passagem. Ele falou: você topa fazer o Castro Alves pede passagem? Falei, musical todo, tem que fazer música pra isso, pra aquilo e tal. Bom, aí nós trabalhamos bastante. Era coisa cotidiana. Eu frequentava os ensaios, fazia as canções, testávamos na hora, todo mundo cantava. Era uma coisa incrível, um espírito mágico, assim. E o Guarnieri trabalhava muito rápido. Quando ele escrevia, ele vomitava as coisas. Eu me lembro que o segundo ato todo do Castro Alves, os produtores, o elenco, esperando na casa dele e a gente chegou lá uma noite: e o Guarnieri? - Olha, ele tá no quarto lá, ele tá meio dormindo. Mas ele não escreveu ainda o segundo ato. Eu falei: como ele não escreveu o segundo ato ainda? Todo mundo ali. Bom, aí eu subi, ele tava numa máquina de escrever, seminu no quarto dele escrevendo, escrevendo, escrevendo. Ele escreveu nessa noite o segundo ato inteiro.
Leonardo Dourado:
Francisco, além desse testemunhal descrito pelo Toquinho, você também tem outros exemplos que nos ajudam a entender o processo criativo febril de seu avô Gianfrancesco Guarnieri, não é mesmo?
Francisco Guarnieri:
É isso. Eu acho que isso que o Toquinho fala se apresenta em outros episódios que na pesquisa para o documentário a gente foi se deparando. Por exemplo, no Ponto de Partida que é uma peça já dos anos setenta, depois do assassinato do Vladimir Herzog pela ditadura, foi uma peça que a Vânia, casada com meu avô, viúva dele que também já falaceu, contou que foi uma coisa assim, que não ia, não ia e um dia ele se trancou, acho que tava o Sérgio Ricardo junto, que fez a peça, a trilha, foi ator, se trancou uns três dias e meio num jorro, sai a peça quase como se só faltasse escrever. Era um processo um pouco doloroso de ficar naquilo que não sai, que não sai e uma hora saía e pouco tempo depois uma peça inteira meio pronta. Inclusive não é parte desse jorro criativo, mas acho interessante que eles sempre falam de muitos momentos com meu avô - Cacau falou disso, Fernanda e Mariana também - de ouvir música junto, música clássica que ele gostava de ouvir e ele explicava pra eles coisa de música que ele sacava muito, de música clássica por causa dos pais dele, não é? E também de quando ia passar algum filme do neorrealismo italiano na TV que ele adorava e via com eles e falava coisas.
Leonardo Dourado:
Interessante isso que você está falando, eu não sabia desse gosto dele pelo neorrealismo italiano. Eu não sei quanto ele influenciou o Leon no filme, mas o filme do Leon tem muito de neorrealismo italiano, aquela cena em que ele discute com o filho na porta da fábrica quando ele é preso, tava com megafone na mão, é muito neorrealismo.
Francisco Guarnieri:
O Leon e ele, pelo que as pessoas me falam disso, a minha mãe me fala disso, ela conviveu um pouco com o Leon e o Guarnieri, eles realmente se davam muito bem, foi um encontro, talvez tenha sido o amigo mais íntimo que meu avô teve, então acho que deve ter sido uma coisa que era dos dois. E esse processo de fazer o filme foi feito por eles muito juntos. Inclusive tem gravações em áudio na Unicamp deles discutindo roteiro, inclusive um roteiro que não aconteceu, ficou totalmente diferente.
Leonardo Dourado:
Ele realmente era um artista completo porque gostava de música, fez essa parceria com o Edu Lobo e gostava de cinema e encontrou um parceiro como o Leon, é de uma riqueza impressionante.
Trilha sonora
Toquinho cantarola:
Quem souber de alguma coisa, venha logo me avisar, sei que há um céu sobre essa chuva e um grito parado no ar.
Leonardo Dourado:
E esse refrão que vocês ouviram o Toquinho cantarolar é de uma canção que ele e Guarnieri escreveram para outra peça do dramaturgo que ficou muito famosa: Um grito parado no ar de 1973. A peça mostrava a dificuldade de um grupo teatral realizar seu trabalho em tempos sombrios de autoritarismo.
Kristina Michahelles:
E não é coincidência: na transição para o retorno à democracia, entre 1984 e 1985, Gianfrancesco Sigfrido Benedetto Martinenghi de Guarnieri - sim, este era seu nome completo - foi nomeado secretário municipal de Cultura de São Paulo.
Leonardo Dourado:
Bem, assim vamos chegando ao fim de nosso programa.
Kristina Michahelles:
E hoje você conheceu ou relembrou os pontos altos da carreira do exilado italiano Gianfrancesco Guarnieri, conheceu vários episódios que não conhecíamos através do depoimento de seu neto e o que ele deixou de legado à cultura brasileira.
Leonardo Dourado:
E como tivemos uma breve palhinha do Toquinho cantando há pouco, deixamos para o final a execução que o compositor fez especialmente para nosso Canto dos Exilados. Ele relembrou o tema de Castro Alves pede passagem.
Toquinho canta e acompanha ao violão:
Meu tempo escutou vindo lá do passado
um poeta que o tempo guardou.
Meu tempo é apressado, meu tempo é danado
meu tempo tudo mudou.
Meu tempo mal guarda o sabor do presente,
se atira para um tempo melhor.
Meu tempo mal pensa, está sempre adiantado,
esqueceu o que sabe decor.
Meu tempo é de morte pra vida,
meu tempo se escorre na multidão.
Meu tempo, poeta
é o tempo engraçado
é o tempo da lua na televisão.
Meu tempo é do homem aflito, apressado, angustiado,
sem remissão.
Meu tempo, poeta, não é do seu tempo
É outra a nossa canção.
Meu tempo, poeta, não é do seu tempo
É outra a nossa canção.
Kristina Michahelles:
Esperamos que tenham gostado. Lembramos que é possível maratonar a série ouvindo todos os oito episódios desta primeira temporada nas principais plataformas de podcast. E a plataforma da Casa Stefan Zweig Digital encaminha para um site com a transcrição completa de todos os programas. Desta forma, incluímos na audiência também os deficientes auditivos.
Leonardo Dourado:
O programa de hoje contou com o depoimento de Gianfrancesco Guarnieri ao Museu da Imagem e do Som de São Paulo e ainda com informações do Dicionário dos Refugiados do Nazifascismo no Brasil. Os depoimentos de Amir Haddad, Flávio Guarnieri, Cecília Thompson e Toquinho foram gravados para a série de TV Canto dos Exilados. Agradecemos a participação do cineasta Francisco Guarnieri aqui conosco. A produção do podcast foi da Taís Silva. A montagem é do Fabiano Araruna. A trilha sonora é do Fabiano Araruna e do Pedro Leal David. O roteiro é meu, Leonardo Dourado, e da Kristina Michahelles. Ambos fizemos também a apresentação do episódio. Até a próxima história.
Fim do episódio 2 - Gianfrancesco Guarnieri






