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Nydia Licia
Episódio 5 - 39'12''

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Vinheta de abertura

 

Leonardo Dourado:

Olá, está começando o podcast Canto dos Exilados em mais um programa da primeira temporada. Eu sou o jornalista Leonardo Dourado.

 

Kristina Michahelles:

Aqui narramos a história daqueles que fugiram da Segunda Guerra Mundial e encontraram abrigo no Brasil, deixando um legado para as artes e a cultura. Eu sou Kristina Michahelles. 

 

Leonardo Dourado:

Kristina Michahelles também é jornalista, tradutora e diretora do museu Casa Stefan Zweig de Petrópolis, uma instituição cultural que apoia esta iniciativa. 

 

Kristina MIchahelles:

Inspirado numa ideia de Alberto Dines, biógrafo do escritor austríaco Stefan Zweig que viveu seus últimos dias no Brasil, o Canto dos Exilados pesquisa e preserva a memória daqueles refugiados.

 

Leonardo Dourado:

E também exalta a contribuição que eles deixaram para nosso país. Além dos acervos das famílias, por trás desse trabalho tem muita pesquisa. Contamos com a ajuda dos historiadores Fábio Koifman, no Brasil, e Marlen Eckl, na Alemanha. No episódio de hoje apresentaremos o perfil da atriz e produtora teatral italiana, Nydia Licia e teremos a participação de Sylvia Leão, filha de Nydia com o ator Sérgio Cardoso.

 

O podcast Canto dos Exilados é patrocinado pela Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, Secretaria Municipal de Cultura e JGP Gestão de Recursos por meio da Lei Municipal de Incentivo à Cultura, Lei do ISS.

 

Passagem

 

Kristina Michahelles:

Nós entrevistamos Nydia Licia em 2015, em São Paulo, poucos meses antes dela morrer. 

Nossa história de hoje começa com uma declaração de amor - muito recorrente - pelo país de acolhida. Ouça o que diz Nydia Licia sobre o início de sua vida profissional em São Paulo, bem jovem:

 

Nydia Licia:

Aprendi português em três meses. Aprendi a escrever e minha vida começou. De maneira diferente, mas foi um começo. Nunca mais pensei na possibilidade de não ser mais brasileira. Eu sou italiana de coração, porque nasci na Itália e porque a Itália é linda. Porque eu amo os alpes dolomíticos, o Mar Adriático, os monumentos antigos, mas não viveria mais na Itália. Tanto que eu não voltei lá para ficar. Voltei algumas vezes para visitar parentes, e pronto.

 

Leonardo Dourado:

Em maio de 1939, a Alemanha de Hitler formalizou um pacto com a Itália do ditador Benito Mussolini. Mais tarde, o Japão também faria parte dessa aliança do Eixo. Nydia tinha 12 para 13 anos quando a família deixou a Europa e conta por que tiveram a fuga facilitada. 

 

Nydia Licia:

Eu saí da Itália em 1939, eu tinha nascido em Trieste, ao norte da Itália. Minha família resolveu ir embora por causa das leis raciais que foram instituídas pelo fascismo. Logo que ia começar a perseguição, o chefe da polícia chegou pro meu pai e disse: "as coisas vão piorar pra vocês, tratem de ir embora". Por que um chefe de polícia ia chegar para um médico e falar isso? Porque meu pai dedicou a vida inteira de seu trabalho às pessoas mais simples, mais pobres. Metade do trabalho dele era de graça, sempre. Não negava nunca uma ajuda a uma pessoa que precisasse. E a recompensa foi que todos ajudaram meu pai a ir embora, não criando nenhuma dificuldade pra ele, tentando facilitar tudo o que fosse possível.

 

Kristina Michahelles:

Bem, comparando a situação da saída da família Schwarzkopf Pincherle, sobrenomes dos pais de Nydia, com a de outros exilados que vieram para o Brasil, até que foi relativamente tranquila. Se é que se pode falar em tranquilidade quando existe uma guerra mundial iniciando e perseguições a pessoas. Em compensação, estabelecer-se em São Paulo foi difícil e sempre trouxe lembranças complicadas:

 

Nydia Licia:

Quando chegamos em São Paulo, minha mãe foi até o Colégio Dante Alighieri, falou com o diretor, tenho dois filhos, gostaria que estudassem, mas nós somos judeus. E o diretor disse: não tem importância, nós temos ordens diretas de Mussolini de que no exterior não existem leis antissemitas. Então eu entrei no Dante e encontrei um ambiente muito mais fascista do que na Itália. Não foi fácil no começo.

Leonardo Dourado:

Não se pode esquecer que no Brasil vigorava o Estado Novo de Getúlio Vargas e o fascismo era razoavelmente popular e bem organizado através da Ação Integralista Brasileira de Plínio Salgado. Eles diziam ter mais de 1 milhão de filiados no país todo.

 

Nydia Licia:

Como meu pai tinha ficado doente, eu precisava trabalhar, trabalhei um ano e meio no consulado italiano e depois soube que o professor Pietro Maria Bardi estava dando um curso de História da Arte num museu em construção na rua de Sete de Abril. Fui pra lá, fui uma das alunas dele e no final do curso ele escolheu três pessoas para ficar com ele. Então me tornei assistente dele.  

 

Kristina Michahelles:

Daqui pra frente, quase que por acaso, Nydia foi sendo envolvida pelo mundo do teatro.

 

Nydia Licia:

Eu trabalhei no museu de arte durante dois anos e um dia um jovem ator de teatro amador veio me procurar e disse: "Nydia, você não gostaria de fazer teatro?". Eu: "teatro? por que  não?". Ele disse: "vem, depois de terminar aqui às seis horas, passa na rua Marconi". Eu estava no museu na Sete de Abril, quer dizer, quase na esquina da rua Marconi. Fui lá, conheci Alfredo Mesquita, diretor do grupo de Teatro Experimental, que tinha acabado de trazer uma obra dos Estados Unidos, de Tennessee Williams, um autor quase desconhecido ainda no Brasil, e perguntou se eu queria fazer um teste.

 

Trilha sonora

 

Segue Nydia Licia:

Aceitei, portanto, trabalhar com Alfredo Mesquita e estreei "À Margem da Vida", a peça de Tennessee Williams, que foi feita para usar pela primeira vez o nome TBC, Teatro Brasileiro de Comédia e toda a renda foi para a construção do Teatro Brasileiro de Comédia que estreou em 1948 e foi a grande mudança em São Paulo porque o teatro mudou completamente depois da vinda do TBC.

Kristina Michahelles:

O jovem e na época iniciante ator Amir Haddad reforça a importância do TBC e analisa o ambiente político e cultural daquela época. 

Amir Haddad:

O teatro brasileiro começou a ser uma atividade cultural importante capaz de atrair um jovem inquieto estudante em São Paulo querendo fazer coisas, numa hora em que o Brasil tá se desenvolvendo muito, a década de 50, o governo do Juscelino Kubitschek, e o Teatro Brasileiro de Comédia e os afilhados que saíram do Teatro Brasileiro de Comédia botando uma realidade cultural muito importante da cidade de São Paulo. E então nós jovens ficamos atraídos por essa forma de expressão ainda mais porque não havia televisão naquela época. 

 

Nydia Licia:

Eu continuava como atriz amadora, mas o diretor italiano que tinha vindo para profissionalizar o TBC tinha montado com Cacilda Becker, Abílio Pereira de Almeida, o espetáculo "Nick Bar", de William Saroyan, e Cacilda fazia o papel principal.

 

Leonardo Dourado:

O diretor a que Nydia se referiu foi o Adolfo Celi, mais tarde casado com Tonia Carrero. E novamente a sorte esteve ao lado de Nydia Licia.

 

Nydia Licia:

(Porém), quando a peça estreou, ela estava grávida, já em quinto mês, e eu brincando disse pra ela: "você quer que eu decore o papel? Se a peça durar muito e você não puder mais representar". E ela brincando também disse: "Claro, vem lá em casa e a gente passa o texto juntas". Eu ia na casa dela, a gente batia papo à tarde inteira e não ensaiava coisa nenhuma. 

 

Kristina MIchahelles:

Claro que Cacilda Becker teve que ser substituída por conta da gravidez e Nydia Licia deu conta do recado, para espanto do Adolfo Celi. Ela não apenas sabia o texto como todas as marcações de cena. E ainda bem, porque já havia duas sessões com ingressos esgotados.

 

Leonardo Dourado:

Nydia também relembra outro momento marcante na montagem de Entre quatro paredes de Jean Paul Sartre. Houve muita dificuldade para liberar a peça.

 

Nydia Licia:

A igreja diz que era proibido as pessoas assistirem a peça de um comunista ateu. E a censura disse que a peça era demais, era muito forte, era imoral, e que Jean Paul Sartre era uma pessoa existencialista. Ninguém sabia o que era existencialista. Mas era um crime ser existencialista. Então, nós fizemos o ensaio geral e fomos embora. De repente telefonemas para cá e para lá. "Voltem, voltem, vai ter um ensaio para a censura à meia-noite". Então voltamos, ensaiamos. Foram quatro censores. Um não era suficiente, foram quatro. Foram os representantes da Sociedade Brasileira de Comédia, que era a dona do teatro, e nós representamos. Quando acabou, silêncio. Silêncio total na plateia. E nós lá, no palco, dizendo: o que será que houve? Os quatro censores levantaram e aplaudiram de pé. A peça foi liberada, porém proibida para menores até 18 anos. Foi um sucesso estrondoso.

 

Leonardo Dourado:

No próximo bloco: 

Nydia Licia trabalhou ao lado de Sergio Cardoso e casou com ele em 1950. A filha do casal, Sylvia, que participa aqui conosco do podcast, revela detalhes desta profícua parceria para o teatro brasileiro e conta como era a vida em família de dois ícones da arte de representar. Em seguida.

 

Leonardo Dourado:

Além da efervescência cultural daquela época, há uma componente econômica importante pra gente ressaltar: O surgimento do TBC foi obra do italiano Franco Zampari, engenheiro ligado às poderosas indústrias Matarazzo. O TBC contava com recursos e condições muito superiores aos padrões de outros teatros brasileiros da época. Estamos aqui com a filha de Nydia Licia e do ator Sergio Cardoso, a cientista Sylvia Leão. Obrigado Sylvia pela sua presença e neste ponto quero imediatamente te perguntar: os 10 anos, período que durou o casamento de seus pais, foram muito ricos para o teatro brasileiro. Como você resumiria os principais pontos do protagonismo que ambos tiveram nesse grande momento da dramaturgia nacional?

 

Sylvia Leão:

Eu acho que uma das principais características tanto da minha mãe como do meu pai foi a característica de eles terem sido pioneiros e protagonistas em quase tudo o que eles fizeram. Por exemplo, eles foram parte do primeiro elenco profissional do Teatro Brasileiro de Comédia, participaram de quase todas as montagens do TBC naqueles três primeiros anos de existência, então isso já foi um pioneirismo. Depois de três anos no TBC, eles já tinham se casado, e eles sonhavam muito, eles tinham muitas ambições, desejos, ideias a respeito do que eles queriam fazer em teatro. E o TBC começou a ficar pequeno para os sonhos deles. Foi quando eles receberam um convite do Serviço Nacional de Teatro para que protagonizassem uma companhia estatal que seria criada, que seria a Companhia Dramática Nacional. E eles viram que os objetivos daquela companhia a ser criada iam muito ao encontro do que eles pensavam, dos sonhos deles. Então eles fizeram as malas, eu era recém-nascida, eles contrataram uma babá e nós fomos morar no Rio de Janeiro. Foi um trabalho insano porque eles montaram três espetáculos em alguns meses, ensaiando de manhã, de tarde e de noite e estrearam no Theatro Municipal inicialmente A falecida, de Nelson Rodrigues, dirigida por José Maria Monteiro, depois A raposa e as Uvas, de Guilherme Figueiredo, dirigido pela Bibi Ferreira e, por último, Canção dentro do pão, de Raimundo Magalhães Jr., dirigida pelo meu pai. Então aí ele já conseguia realizar um dos maiores sonhos que ele tinha, que era o de ser diretor de teatro.

Leonardo Dourado:

Exatamente, Silvia. Infelizmente a Companhia Dramática Nacional foi um projeto que só durou dois anos. Eles tinham uma preocupação social também, de ingressos a preços populares, formação de público. Foi uma pena, mas como você falou já foi um ato de coragem.

Kristina Michahelles:

E a empresa Bela Vista? Porque em 1954 os teus pais voltaram pra São Paulo e em maio de 56, com Nydia no elenco de Hamlet, inauguraram o teatro Bela Vista. No final, aquilo se transformou numa odisséia, não foi mesmo Sylvia?

 

Sylvia Leão:

É verdade, quando terminou o contrato da Companhia Dramática Nacional, eles decidiram permanecer em São Paulo porque já tinham outros sonhos, objetivos e agora o sonho deles era criar uma companhia própria. Eles queriam ter uma companhia deles e acreditavam também que uma uma companhia de teatro que não tem uma sede própria é falha. Então queriam fundar uma companhia e ter uma sede própria. A companhia foi fundada em 1954, Companhia Nydia Licia e Sergio Cardoso, e com aqueles objetivos que eles traziam da Dramática Nacional que eram os objetivos de produzir textos de autores brasileiros encenados e dirigidos por brasileiros. Produziram Lampião, da Rachel de Queiroz, e Sinhá Moça Chorou, do Ernani Fornari, em 1954. Mas as dificuldades eram imensas e eles resolveram se fixar na construção de um teatro próprio com o qual eles teriam menos problemas. Por acaso acabaram descobrindo um cinema abandonado no bairro do Bixiga, na rua Conselheiro Ramalho, foram falar com os proprietários daquele imóvel e viram que os proprietários não estavam interessados em teatro ou cinema, iriam transformar aquele imóvel num supermercado. Meu pai ofereceu então a possibilidade de alugar aquele espaço por um período de 10 anos com uma prorrogação de mais cinco anos e os proprietários aceitaram. Só que meus pais não tinham dinheiro algum pra fazer isso. Eles fizeram o contrato e depois saíram atrás desse dinheiro.

 

Leonardo Dourado:

Ou seja, um negócio corajoso e sofisticado do ponto de vista econômico, um risco realmente, eles assumiram o risco.

 

Sylvia Leão:

Arriscado, mas eles conseguiram porque São Paulo era uma cidade que tinha muita gente interessada em cultura, em teatro e que comprou essa ideia deles. Em dois anos eles conseguiram reformar aquele imóvel e inauguraram um teatro, que foi o teatro Bela Vista, com Hamlet de Shakespeare, uma terceira montagem do meu pai de Hamlet de Shakespeare, agora tendo ele como diretor do espetáculo. A minha mãe participou como a rainha, no papel da rainha e eles contrataram alunos recém-saídos da Escola de Arte Dramática, nenhum deles tinha mais do que 30 anos, e eles enfrentaram esse desafio de fazer uma tragédia tão importante quanto Hamlet de Shakespeare num teatro novo, numa companhia nova.

 

Leonardo Dourado:

E esse projeto durou 15 anos, não é? Porque o Belavista se manteve por 15 anos e aí teve aquele impasse: os proprietários queriam (retomar o prédio). Como terminou essa questão?

 

Sylvia Leão:

Bom, o Bela Vista durou 5 anos com meu pai e minha mãe juntos na companhia Nydia Licia e Sergio Cardoso, daí eles se separaram e ela ficou com a parte dele na empresa Bela Vista e a parte dele no teatro. Então ela ficou sozinha, criou a companhia Nydia Licia e enfrentou mais um desafio com muita coragem, pioneirismo que foi o de ser uma mulher na década de 60 responsável pela administração de um teatro e de uma companhia teatral. Nisso ela foi também muito pioneira e muito protagonista, ela produziu um total de 80 espetáculos, entre produções próprias e coproduções para manter aquele teatro em constante funcionamento. Nesse período houve uma briga com os outros dois sócios da empresa Bela Vista, que não queriam que ela ficasse, que queriam que ela concorresse ao teatro como qualquer outra companhia e ela era uma pessoa muito corajosa, profissional, ela não iria abandonar aquele teatro que ela criou com tanto sacrifício junto com meu pai, então ela enfrentou essa briga inclusive na Justiça. E ela acabou ganhando, conseguiu ficar no teatro, a classe teatral apoiou ela nessa ocasião, fizeram até uma passeata no centro da cidade para que ela conseguisse ficar com o teatro dela, ela ficou com o teatro durante 10 anos, depois da separação do meu pai. E depois desses 10 anos o contrato com os proprietários, aqueles antigos proprietários do imóvel, o contrato terminou e os proprietários não se interessaram em manter e ela teve que deixar o teatro. Daí realmente foi o fim, isso foi 1970 e ela deixou o teatro, mas pelas características que vocês já estão conhecendo a respeito dela, ela também não iria deixar aquele teatro ser transformado num supermercado ou qualquer coisa. Então ela ainda conseguiu que o governo do estado de São Paulo desapropriasse aquele imóvel e construísse um teatro estatal que é o teatro Sérgio Cardoso que existe até hoje. Então o teatro que ela criou lá em 1956 existe até hoje graças ao trabalho dela.

 

Kristina Michahelles:

Incrível, porque ela aliou idealismo com empreendedorismo e mão na massa. São três fatores. E o que mais você destacaria nesse protagonismo de Nydia Licia e Sergio Cardoso para o teatro brasileiro, porque não parou por aí, não é? 

 

Sylvia Leão:

Olha, não parou por aí, eles além de serem protagonistas e pioneiros em várias etapas do teatro paulista e brasileiro, também foram pioneiros em televisão. É uma parte pouco conhecida da vida deles, dos dois, porque nessa época não existia videotape, então tudo o que eles fizeram no início da televisão, não existe cópia, não existe como recuperar isso, mas desde o início da televisão - a televisão iniciou no Brasil em 1950 - em 1953 eles já estavam produzindo e atuando em programas de televisão na TV Record, em teleteatros na TV Tupi, na TV Excelsior, na TV Paulista. E eles fizeram televisão o tempo todo, desde a década de 1950 até a morte dos dois, ambos trabalharam em televisão a vida toda e meu pai acabou se transformando num galã de televisão com mais de 40 anos, reconhecido nacionalmente, inicialmente na TV Tupi e depois na TV Globo e ela participou da criação da TV Cultura, onde foi assessora cultural e depois diretora do departamento cultural. E ela criou muitos programas da TV Cultura que fizeram sucesso, teleteatros e programas infantis.

 

Leonardo Dourado:

Silvia, As novas gerações não conhecem, mas Sergio Cardoso foi um dos maiores atores do teatro e do início da televisão no Brasil, como você está contando aí, é verdade. Eu mesmo me lembro, no início da televisão, eu assistia “televizinha”, nós não tínhamos TV em casa, mas ele foi muito importante para a vida e a carreira de Nydia Licia. Nós localizamos uma gravação no Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro de 1971, com vários artistas declamando poemas de Castro Alves no centenário da morte do poeta baiano. Sérgio Cardoso era um deles.

 

Sergio Cardoso (arquivo):

Era dois de julho, a pugna imensa travara-se nos cerros da Bahia. Na sessão em que tomou parte no Ateneu Paulistano conquistou definitivamente os títulos de poeta dos escravos e de poeta republcano. Assim, depoimentos não faltam. Era o uirapuru das arcadas. A passarada, de todo, silenciava para ouvi-lo, não só nas arcadas como também nas serenatas e nas casas onde era recebido. Foi o que ocorreu quando recitou o Navio Negreiro: os adjetivos se inclinavam ao seu comando e a sua musa libertária transformava seus versos em legiões.

 

Kristina Michahelles:

Nydia relembra com muito carinho os anos iniciais do seu romance com Sergio Cardoso.

Nydia Licia:

Eu tinha conhecido o Sergio quando ele veio com o teatro do estudante, representava o Hamlet no Municipal, e todos eles vieram assistir o ensaio de “À Margem da Vida", onde eu fazia uma menina que manquitolava, isso era o termo usado na época, era manca, enfim. E todos eles foram simpaticíssimos, gostaram muito, a gente ficou amigo de todo mundo, e pronto. Aí o Sergio fundou o Teatro dos Doze, no Rio, e ia remontar, com outra direção o Hamlet, e precisava da rainha. E Sérgio Britto lembrou de mim, disse: "Por que você não convida a Nydia?" e o Sérgio respondeu: "Pra fazer a rainha? Mas ela é manca". Fantasia e realidade eram um pouco confusas na cabeça. Mas, eu acabei fazendo a rainha.

 

Kristina Michahelles:

Quando o casamento com Sérgio acabou, tudo ficou mais difícil, mas, de novo, a sorte estava ao lado de Nydia. Ela precisava de bons diretores e lá estava o Amir Haddad.

 

Amir Haddad:

E na época eu estava começando minha carreira, tinha dirigido no Teatro Oficina, mas já estava afastado, o Zé Celso estava dirigindo e eu tinha saído e ela precisava de alguém pra montar o espetáculo imediatamente senão ela perderia o teatro dela, ia virar um supermercado. Dirigi pra Nydia Licia “Se Meu Apartamento Falasse”, um espetáculo interessante que tinha como atração principal um jovem galã começando seus passos que era o Tarcísio Meira.

 

Leonardo Dourado:

Então eu queria voltar um pouquinho nessa questão do final do teatro Bela Vista porque quando terminou aquele litígio, a Nydia perdeu a causa em 1971, mas o governo do estado de São Paulo desapropriou o prédio e reinaugurou o teatro com o nome de Teatro Sergio Cardoso. Eles escolheram para a  estreia “Sergio Cardoso em prosa e verso”. No palco, a atriz Nydia Licia, sob a direção de Gianni Ratto.

Nydia Licia:

As emoções todas que eu senti nesse palco, no meu palco do Bela Vista, eu senti novamente no palco do Sergio Cardoso, na noite da inauguração. Estava lá eu ao lado de Rubens de Falco, De Biasi, Magnani. Nós quatro, apresentando aos convidados da noite de inauguração, o texto com o qual o Sérgio iria voltar para o teatro depois de quase dez anos dedicados só à televisão. Sergio morreu antes disso. Sergio com seus monólogos incríveis, com aquela voz que nunca ouvi em outro ator...as inflexões que ele tinha. E nós homenageamos Sérgio dirigidos por Gianni Ratto, o texto dividido em quatro vozes por Carlos Queiroz Telles, e quando eu pisei neste palco, neste novo, eu me senti em casa.

 

Kristina Michahelles:

E agora, um lado pouco conhecido da Nydia Licia: o seu trabalho com teatro infantil. Ela mesma é quem conta.

Nydia Licia:

Chegou um momento que eu dei um basta à minha atuação como atriz. O teatro tinha mudado demais porque havia uma certa confusão daquilo que se podia e que não se podia dizer e fazer para crianças. Então passei a me dedicar só ao teatro infantil, e infanto-juvenil.

Nós chegamos a dar espetáculos em outro lugar porque a essa altura eu já tinha devolvido o teatro Bela Vista aos proprietários. Tinha alugado salões de escolas e fiquei num teatro que eu transformei em teatro (era um auditório em uma escola na Vila Mariana), e fiquei lá uns quinze anos. A lotação era de 800 lugares. O teatro lotava. Nós distribuíamos aquilo que se chamava filipeta, na ocasião, nas escolas mais longe e nós alugávamos os ônibus que iam buscar e trazer as crianças. Chegamos a dar espetáculos todos os dias da semana. Na semana das crianças então, dávamos dois ou três espetáculos. Foi um sucesso enorme.Todas as peças eram musicadas com dança,com canto. Canções criadas especialmente para a peça, coreografias criadas especialmente para a peça. Ensaiadíssimas. E aí obrigamos as outras companhias que já não tinham alcançado um nível alto a subir, a melhorar. Isto foi uma contribuição que a companhia deu pra São Paulo.

 

Leonardo Dourado:

Sylvia, agora eu queria perguntar pra você uma questão pessoal e familiar. Tem sempre um fantasma que ronda a infância de filhos de pais famosos: uma certa dicotomia entre ser um pai e uma mãe presentes e a dedicação exigida no trabalho. Como foi esta situação para você?

 

Sylvia Leão:

Realmente é muito diferente, como criança, você ser filha de pais que saem para trabalhar à noite, em teatro, enquanto todos os outros pais das suas amigas trabalham de dia e no fim de semana ficam com a família. Os meus pais no fim de semana trabalhavam e não ficavam comigo, eu tinha sempre alguém pra cuidar de mim. Mas isso não significa que eles não foram presentes na minha vida. Houve uma preocupação imensa deles de me preservar de todo o sacrifício que eles fizeram, eu sempre fui preservada, eu sempre fui amada por eles e eles me deram uma educação muito voltada para a cultura. Mesmo que eu não tenha seguido essa carreira - eu acabei seguindo a carreira de medicina - mas eles me deram uma educação muito voltada para a cultura, de toda essa cultura que emanava deles. Então, realmente hoje eu estou muito mais unida a eles do que eu jamais estive em toda a minha vida.

 

Kristina Michahelles:

Este teu depoimento é muito importante em nome da preservação da memória e a própria Nydia, que faleceu em São Paulo em 12 de dezembro de 2015, alguns meses antes, quando deu esta entrevista para nossa equipe, falou o que seria seu legado.

 

Nydia Licia:

Eu acho que eu deixo um exemplo para os jovens, na escola: explicar pra eles que representar, fazer teatro não é entrar em cena e se olhar no espelho. Você tem que se dar ao teatro. Tem que sentir que você faz parte de uma equipe, que você não trabalha sozinho, não existe sozinho. Ou você é sincera ao entrar no palco, ou você representa com o coração, ou o palco te rejeita. Você não engana. Eu acho que se você deixa uma lembrança positiva e um exemplo positivo isso vai florescer um dia em alguém. Se uma pessoa em cada turma aceitar isso que eu estou querendo lhe dar, eu me sinto muito feliz.

 

Kristina Michahelles:

E assim chegamos ao fim do nosso programa. Esperamos que tenham gostado. Lembramos que é possível ouvir a série completa de oito episódios do podcast Canto dos Exilados na sua plataforma preferida ou na Casa Stefan Zweig Digital.

 

Leonardo Dourado:

Bom, a gente mais uma vez vai agradecer a participação da filha da Nydia Licia com o Sergio Cardoso, a Silvia Leão que está aqui conosco no estúdio, e dizer que o programa de hoje contou com informações de nossa própria apuração, também do Dicionário dos Refugiados do Nazifascismo no Brasil e do acervo da Fundação Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro. A produção foi da Taís Silva. A montagem, do Fabiano Araruna. A trilha sonora é do Fabiano Araruna e do Pedro Leal David. O roteiro é meu, Leonardo Dourado, e da Kristina Michahelles e ambos fizemos também a apresentação do episódio. Até a próxima.

 

Fim do episódio 5 - Nydia Licia

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