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Hans-Günter Flieg
Episódio 8 - 26'35''

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Vinheta de abertura

 

Leonardo Dourado:

Olá, começa agora mais  um episódio da série de podcasts Canto dos Exilados. Eu sou o jornalista Leonardo Dourado.

​​

Kristina Michahelles:

Aqui apresentamos histórias de vida daqueles que fugiram da Segunda Guerra Mundial e encontraram abrigo no Brasil, deixando um legado para as artes e a cultura. Eu sou Kristina Michahelles.

 

Leonardo Dourado:

Kristina Michahelles também é jornalista, tradutora, roteirista e diretora do museu Casa Stefan Zweig de Petrópolis, instituição cultural que apoia esta iniciativa.

 

Kristina MIchahelles:

Inspirado numa ideia de Alberto Dines, biógrafo do escritor austríaco Stefan Zweig que viveu seus últimos meses no Brasil, o Canto dos Exilados pesquisa e preserva a memória daqueles refugiados.

 

Leonardo Dourado:

E também ressalta a contribuição que eles deixaram para nosso país. Além dos acervos das famílias e de algumas instituições, por trás desse trabalho tem muita pesquisa. Contamos com a ajuda dos historiadores Fábio Koifman, no Brasil, e Marlen Eckl, na Alemanha. No episódio de hoje apresentaremos o perfil do fotógrafo alemão Hans-Günter Flieg

 

O Podcast Canto dos Exilados é patrocinado pela Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, Secretaria Municipal de Cultura e JGP Gestão de Recursos por meio da Lei Municipal de Incentivo à Cultura, Lei do ISS.

 

Passagem

 

Kristina Michahelles:

Hans-Günter Flieg nasceu em Chemnitz, no leste da Alemanha, em três de julho de 1923. Comemorou seus 100 anos em São Paulo, onde passou a maior parte de sua vida quando veio para o Brasil. As falas do fotógrafo que estão neste episódio são trechos de uma entrevista que ele deu ao Leonardo em 2014, depois de muita relutância.

 

Leonardo Dourado:

É verdade, Kristina. Pro nosso público entender o contexto, na época nós estávamos gravando depoimentos para a série de TV do mesmo nome, Canto dos Exilados, agora reutilizamos parte do material e apresentamos trechos inéditos das entrevistas. Eu estava com uma pequena equipe de documentário, quatro pessoas no total, incluindo câmera e equipamento de luz e som. Por telefone, o Flieg sempre se recusava a nos receber, alegava ter os seus então 91 anos. De nada adiantaram os apelos de nossa pesquisadora alemã Marlen Eckl, sua amiga. Mesmo assim, resolvemos arriscar e partimos do Rio de Janeiro para São Paulo.

 

Kristina Michahelles:

E como foi que vocês conseguiram, afinal?

Leonardo Dourado:

Bem, a produtora descobriu com outra pessoa da casa que os melhores momentos de relaxamento do Flieg eram sempre logo após a fisioterapia. Então, tudo combinado, armamos uma pequena cilada para subir ao apartamento um dia após a saída do fisioterapeuta. Eu telefonei do carro em frente à casa, ele negou novamente. Mas eu tinha levado do Rio uma belíssima edição de fotos do Flieg em uma exposição e pedi para ele pelo menos autografar o livro, uma vez que eu tinha vindo de outra cidade e coisa e tal. E pedi que a equipe ficasse com tudo pronto para subir, caso minha pequena chantagenzinha emocional lá em cima funcionasse. Funcionou. Ele assinou, batemos um papo inicial e ele autorizou a entrada da equipe de filmagem.

 

Kristina Michahelles:

Bem, é dá pra entender, afinal na ocasião Flieg já era um senhor idoso. Nosso público vai perceber que a voz dele soa fraquinha, ele faz pausas entre um pensamento e outro para organizar bem as ideias, mas também por conta da língua e isso cansa. Enfim, como foi o clima da entrevista?

 

Leonardo Dourado:

Eu diria que foi no mínimo pitoresco. Flieg volta e meia me deixava desconcertado fazendo perguntas ou devolvendo para a equipe minhas perguntas a ele, queria saber a opinião deles a respeito. Como bom alemão respondia direto, sem nenhuma preocupação em ser simpático, apenas ordenando as ações em um tom professoral. Eu achei curioso e entrei no jogo, ouçam o início da gravação.

 

Hans-Günter Flieg:

O senhor faça perguntas e eu vou lhe responder.

- Tá, vou lhe perguntar: Por que o senhor resolveu vir para o Brasil justamente?

- Desculpe, qual é sua idade?

- Cinquenta e nove.

- Bom, 32 anos de diferença são muito. Eu sou judeu e em 38 começaram os …, em verão de 38 começaram movimentos contra os judeus na rua, já tinham começado antes, mas um pouco mais forte, em novembro veio a Noite de Cristal e as possibilidades de continuar vivendo na Alemanha desde 33 já se complicaram, vamos dizer ano por ano. E houve uma possibilidade de vir ao Brasil, tinha havido duas outras possibilidades de ir para África do Sul ou pros Estados Unidos, mas a possibilidade para o Brasil foi a primeira. Em fins de 39, a gente tinha que preparar uma vida que tinha terminado todas as chances de educação. Eu estava com quinze anos e meio, havia a possibilidade ainda de conseguir uma câmera Leica e uma máquina Linhof, então eu aproveitei para tomar um curso com uma fotógrafa que tinha sido fotógrafa freelance do Museu Judaico em Berlim. 

 

Kristina Michahelles:

É engraçado mesmo o jeito dele falar. A fotógrafa a quem o Flieg se referia era Grete Karplus. Ela documentava as obras do museu judaico, e ele fazia suas aulas no estúdio dela na Hectorstrasse 4, em Berlim. Após a Noite dos Cristais, mencionada pelo Flieg, a família teve os bens confiscados e decidiram acelerar a fuga. A viagem foi cheia de sobressaltos. O navio foi parado em Marselha, na França, para a polícia política alemã procurar passageiros indocumentados. Esconderam uma pequena máquina de bordar e chegaram a São Paulo em dezembro de 1939. A Bordados Flieg foi o primeiro meio de sustento da família e existe até hoje na rua da Consolação.

 

Leonardo Dourado:

Na sequência, entenderemos mais sobre a importância de Flieg para a fotografia no Brasil através do Sérgio Burgi do Instituto Moreira Salles. Aos poucos a entrevista foi tomando seu rumo.

 

Hans-Günter Flieg:

Em 45 quando terminou a guerra, a guerra teria sido uma complicação para mim que tinha vindo da Alemanha. O Brasil estava em guerra contra a Alemanha então estabelecer-se como fotógrafo teria sido um pouco complicado. Então de 45 em diante eu trabalhei por minha conta até 88. 

 

Sergio Burgi:

Flieg, portanto, vai se profissionalizar aqui no Brasil. Ele se instala profissionalmente após a guerra. Mas está no contexto de uma migração muito forte ocorrida no Brasil que antecede a guerra, durante a guerra, de profissionais que vieram ao Brasil e atuaram no campo das artes aplicadas, no campo da fotografia particularmente, mas também no campo das artes gráficas, do design. 

Kristina Michahelles:

O Sérgio Burgi tem mestrado em conservação fotográfica nos Estados Unidos e desde 1999 coordena a área de fotografia do Instituto Moreira Salles. Ele é portanto uma autoridade para falar sobre Flieg até porque lá no IMS estão armazenados mais de 59 mil negativos e fotografias que compõem o acervo inteiro do fotógrafo alemão.

 

Sergio Burgi:

O acervo de Flieg que foi incorporado ao acervo fotográfico do Instituto Moreira Salles incorpora também as suas decisões e a sua interpretação desses negativos em laboratório, quer dizer, o tipo de ampliação que ele realiza, a forma como ele lida com a finalização dessas imagens, lembrando que o processo negativo positivo é um processo onde numa primeira etapa você cria o registro, você captura essencialmente toda a informação de luz da cena original, mas existe uma segunda etapa que é a etapa de interpretação disso no laboratório na forma do positivo. Quer dizer, esse processo de ampliação é um processo extremamente importante e que depende de decisões que o fotógrafo toma no momento do laboratório. Então todos esses aspectos estão registrados no acervo de Hans-Günter Flieg no Instituto Moreira Salles e eles permitem com que a gente possa pesquisar sua biografia, sua trajetória, entender os momentos desde os seus primeiros trabalhos ainda jovem até o seu trabalho mais maduro no final dos anos 80. 

Leonardo Dourado:

A certa altura de nossa conversa, Flieg começou a contar reminiscências de sua juventude e do começo de seu envolvimento com a fotografia na Alemanha da década de 1930. 

 

Hans-Günter Flieg:

Bem, eu estava na Silésia, nas montanhas e um tio médico - também de montanha mas um pouco distante - me mandou pro natal uma câmera três por quatro, a Zeiss Ikon, máquina muito simples e na época não se mandava fazer ampliações. As ampliações, a revelação e as cópias-contato, na época se fazia em drogarias.  

 

Leonardo Dourado:

Flieg arrematou dizendo que na Alemanha daquela época toda drogaria tinha um pequeno laboratório ao lado, onde eram feitas revelações de fotografias.

Kristina Michahelles:

Mas afinal, Hans-Günter Flieg fez escola entre os fotógrafos brasileiros ? Qual sua importância para novas gerações de profissionais ? Vamos ouvir o que o Sergio Burgi pensa sobre isso. 

 

Sergio Burgi:

O que nós vemos é que os profissionais que vieram de fora do Brasil e atuaram no campo da fotografia, na sua maior parte permaneceram por longos períodos ou permaneceram a vida inteira. Isso se deu no século 19, no século 20 também, e Flieg é um exemplo disso. Portanto isso reflete também na realidade de uma arte aplicada num país como o Brasil que não se estruturou ao longo de décadas para qualquer formação profissional no país.

 

Na verdade, a fotografia foi praticada essencialmente por profissionais que, ou se autoinstruíram, ou profissionais que vieram de fora com uma bagagem, e realmente só a partir da década de 1980, 1970 e 80 que você começa a ver um corpo de (principalmente) de profissionais saídos da universidade brasileira, já com alguma bagagem no campo da fotografia, e que vão ocupando de fato esse mercado de tal forma que hoje a presença de estrangeiros na fotografia brasileira é insignificante.

 

Mas em períodos anteriores, e por exemplo em meados do século 20, quando o Flieg chega a aqui ainda na primeira metade na década de 40, essa contribuição dos fotógrafos propriamente é muito decisiva, inclusive na formação de novas gerações. Tudo se dá um pouco pelas referências da qualidade do que está sendo produzido, pela forma como esses profissionais interagem no meio, como eles acolhem eventualmente fotógrafos ou aspirantes a fotógrafos que irão trabalhar com eles, ou, ao mesmo tempo, fotógrafos ou iniciantes que terão no trabalho desses fotógrafos já estabelecidos uma referência de qualidade. No caso de Flieg, eu diria que exatamente a qualidade do trabalho dele que marca uma influência sobre as gerações seguintes. 

 

Então, ele tem uma presença grande em fotografia em São Paulo, ele participa dos circuitos profissionais e a partir do final dos anos 70, início dos anos 80 passa a ter uma expressão pública, o seu trabalho começa a ser apresentado nos museus, como o Museu da Imagem e do Som, isso se torna então uma referência ainda mais marcante, quer dizer, poderia dizer que uma geração de fotógrafos de arquitetura que se estrutura em meados dos anos 80 e 90, em São Paulo, tem como referência o trabalho de Flieg, que é um fotógrafo que além da fotografia industrial é também um excepcional fotógrafo de arquitetura em São Paulo, da arquitetura industrial, mas também da arquitetura urbana e do próprio espaço urbano.

 

Leonardo Dourado:

No próximo bloco: O dia em que Hans-Günter Flieg enquadrou Jânio Quadros e mandou o político de volta para casa.

 

Kristina Michahelles: 

Nós ouvimos no começo do programa, Hans-Günter Flieg organizando o ambiente de entrevista e instruindo o entrevistador: o senhor pergunta e eu respondo. Com o correr da gravação ele demonstrou que também nunca gostou de imprecisões. Leonardo estava lá e dá mais detalhes que nos ajudam a conhecer a personalidade de Flieg.

 

Leonardo Dourado:

Realmente Kristina. Eu me considerava bem preparado antes de partir para as filmagens do episódio sobre Flieg na série Canto dos Exilados. Li muita coisa em fontes variadas, vi inúmeras fotos dele e destaquei uma em particular super bem iluminada na qual aparecem vários funcionários da gráfica do estado de São Paulo em ação. Achei que era um bom mote para ressaltar uma história em tom jocoso que os artigos sobre ele sempre gostaram de sublinhar. Muito cioso de sua biografia, Flieg tratou de pôr as coisas no lugar. A seguir vou reproduzir o áudio original da entrevista à época para se ter uma noção do diálogo.

 

Leonardo Dourado e Hans-Günter Flieg:

E me chama atenção a foto porque tem muita luz embaixo em todos os planos. E tem uma certa piada que contam que quando o senhor chegava para fotografar as empresas, os operários todos gostavam muito porque a fábrica parava e ficavam fazendo nada. 

- Não é bem isso.

- Não é verdade? Conte.

Não é bem isso, não. Esta observação vem de uma reclamação de um dos diretores da Mercedes-Benz. A verdade é que eu achava mais importante que uma foto que fosse mostrada aqui a compradores ou vendedores que, enfim, representasse a fábrica de uma maneira decente e que os operários ficassem numa posição de trabalho e que cada um ficasse fazendo parado a atividade dele, não é? Então isso tinha que ser posado e o chão tinha que ser limpo. E o diretor teria que aguentar. Teria que aguentar porque eu não sei se o senhor que é fotógrafo não agiria da mesma forma?

 

Leonardo Dourado:

Estas situações são desconcertantes. Tentei mudar de tema, ficando ainda no clima de amenidades e perguntei sobre um episódio quando Jânio Quadros tentava sua eleição para prefeito de São Paulo. De novo, reproduzo o áudio original para sentir-se o clima da entrevista naquela ocasião.

 

Leonardo Dourado e Hans-Günter Flieg:

Agora, também é muito famosa uma participação sua como o ex-presidente Jânio Quadros. Eu queria que o senhor contasse essa história. O senhor reclamou justamente, mandou ele voltar pra casa, assim consta nos livros, porque ele estava mal arrumado com a gravata.

- Consta em que livro isso?

- Agora eu preciso lembrar. Eu li tanta coisa a seu respeito. 

-  Eu não li esse livro, não.

- Não?

- Não.

- Me chamou atenção porque só tem duas informações sobre personalidades: o tempo que o senhor gastou com Hebe Camargo para tranquilizá-la, para fazer uma foto dela.

- Não foi Hebe Camargo.

- Não foi Hebe Camargo?

- Não, não foi Hebe Camargo.

 

- E como foi com Jânio Quadros?

- A história de Jânio, enfim, sim, eu falei para ele para voltar porque eu disse pra ele: eu sou fotógrafo de propaganda e o produto que eu fotografo tem que se apresentar da melhor forma possível. Quando se trata de embalagem tem que ser a embalagem perfeita e eu gostaria de ver o senhor amanhã.

- O senhor acha? (refere-se a pergunta de Jânio) Acho. (refere-se a resposta a Jânio)

- O que foi que o senhor falou pra ele? O senhor nem falou nada, só fez o gesto?

- Só fiz o gesto.

- O que foi exatamente? Qual foi o problema dele? Ele estava mal arrumado?

- Ele estava em terno de funcionário público azul escuro, provavelmente azul escuro, com gravata fixa de plástico, um pouco populista, vamos dizer, porque não precisava, e estava de caspa. Então eu sugeri voltar com o terno escovado e barbeado. Era para um cartaz que seria visto na rua para ser prefeito de São Paulo. O pior é que com esse cartaz ele ganhou.

 

Leonardo Dourado:

Então, para arrematar esta curiosa passagem da vida profissional de Hans-Günter Flieg em São Paulo, esclareço que o tal gesto a que ele se refere na entrevista em vídeo é aquela tradicional espanadinha que se costuma fazer levemente com a mão no ombro para tirar caspa.

 

Kristina Michahelles:

Deixando agora de lado os aspectos pitorescos e retomando a importância do legado do fotógrafo alemão vamos voltar com o Sérgio Burgi do Instituto Moreira Salles onde está o acervo do Flieg. Ele comenta a contribuição do artista também para a publicidade e para as artes gráficas.

 

Sergio Burgi: 

O Flieg se insere nesse campo, no campo da fotografia, no campo das artes gráficas ele começa trabalhando em empresas gráficas em São Paulo e aí depois se estabelece profissionalmente como fotógrafo, mas nunca abandona esse universo que é o universo da própria publicidade, por onde ele também entrou e nesse campo, além da qualidade de seu trabalho fotográfico, ele sempre teve também muito conhecimento dos processos de artes gráficas e buscou inclusive combinar soluções que fossem do ponto de vista da qualidade das suas imagens e também do ponto de vista comercial, relevantes. Então ele desde cedo está buscando realizar trabalho de qualidade e ao mesmo tempo com muita consciência das etapas, não só da fotografia como das artes gráficas, ele se aproxima do design, trabalha muito a fotografia de objetos e tem ao mesmo tempo muita clareza sobre isso.

 

Kristina Michahelles:

Nunca é demais ressaltar a importância da preservação dos acervos e da memória. 

 

Sergio Burgi:

Esses são aspectos muito relevantes porque não só esse conjunto está todo preservado como ele é também uma ferramenta importante no sentido biográfico do artista, no sentido de compreender as suas decisões, as influências que ele na verdade teve sobre a comunidade fotográfica e sobre outros fotógrafos ao longo das décadas e isso tudo é possível de ser pesquisado e olhado no acervo.

 

Kristina Michahelles:

O programa de hoje contou com informações de nossa própria apuração e também do Dicionário dos Refugiados do Nazifascismo no Brasil, editado pela Casa Stefan Zweig. A produção foi da Taís Silva. A montagem, do Fabiano Araruna. A trilha sonora é do Fabiano Araruna e do Pedro Leal David. O roteiro é do Leonardo Dourado e meu, Kristina Michahelles, e ambos fizemos também a apresentação do episódio. Até a próxima.

Leonardo Dourado:

Lembrando que as gravações foram feitas aqui no Espaço Ipiranga no Rio de Janeiro. Tchau e até a próxima.


 

Fim do episódio 8 - Hans-Günter Flieg

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